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A Semana Santa

A Semana Santa é uma data do calendário cristão que marca a paixão, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. No Brasil é um período de profunda reflexão para a religião católica e, como em outras datas tradicionais, também é época de festejos populares. No Ceará, a Semana Santa é tempo de Careta.
O Careta é um personagem que, durante a Semana Santa, sai em bando no meio do mundo fazendo algazarra e perturbando quem passa pedindo um trocado pra “intera” do vinho ou o vinho inteiro quando vê que dá. Vestindo trapos, trajando máscaras que misturam o horrendo e o risível e levando consigo um espantalho, chamado tradicionalmente de Judas, os Caretas aparecem e desaparecem deixando um rastro de desordem por onde passam e representam o lado mais profano do feriado cristão. O município de Jardim/CE é reconhecido pelos tradicionais grupos de Caretas que estão tanto na sede do município como nos sítios e regiões mais agrárias. Na Semana Santa, a festa dos Caretas é um evento que movimenta a cidade inteira e atrai pessoas de todo o território nacional.
O Careta é um personagem em muito parecido com o Papangu que é um outro mascarado, também fantasiado de trapos, também alegremente caótico e que também conjuga em si um delicado equilíbrio entre encantamento e medo. O Papangu é um personagem que eu conheço desde pequeno do Litoral Leste do Ceará que sai em bando no período do Carnaval. O primeiro caminho que tracei pro filme era no rumo do Papangu no litoral. Um descaminho dois acabei batendo em Jardim.

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Achando canto pra mim

A pandemia atrasou as coisas na pesquisa e na articulação que deram no filme. Mesmo dentro da cidade às vezes não conseguia encontrar as pessoas. Os grupos todos sempre falavam das dificuldades que faziam parte do fazer a festa e pautavam a pandemia como um impacto gigante. A festa precisa da euforia de muita gente junta, por muitos motivos. Em 2023 já estava lá de novo, seguindo o combinado, cheguei no primeiro domingo e já estavam aprontando uma passeata com os Karetas da região. Entendi que se escreve com K. A fotografia me ajudou a entrar na euforia da festa. De uma certa forma a câmera servia como minha máscara, que como toda máscara mais revela do que esconde. Fiquei pensando nisso enquanto fotografava aquela multidão de Karetas no meio da rua. Achei aquilo tudo muito bonito. Eu estava realmente emocionado.

No final do cortejo dois Karetas me chamaram no canto e a conversa foi bem curtinha. Sem tirar a máscara e sem mudar a voz pra não entregar a identidade falaram comigo.

  • Ei a gente faz a festa lá em cima, na Serra, também, quer ir ver?
  • Tem canto pra eu dormir?
  • Tem! Dorme lá em casa!
  • Pois

Em nenhum momento os Karetas tiraram a máscara ou usaram as suas vozes de gente pra falar comigo (Kareta é meio bicho, aprendi um tempo depois). Isso poderia ter dificultado um pouco a minha situação já que eu teria que procurar pelas pessoas depois, mas eu não estava realmente pensando nisso naquele momento. Na quinta tava lá eu e Camilla. Conhecemos Itamar e João (os Karetas que fizeram o convite) e o povo de Serra Areias. De quinta até domingo vivi a festa com eles. No final, combinamos que na festa seguinte vinha eu e minha turma junto. Assim foi.

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Filmar o mistério

Tenho uma visão particular sobre o conceito de mistério que não é tão particular assim, mas que é um tanto oposta ao pensamento mais comum sobre a palavra e em algum momento está muito ligada ao filme. O mistério dentro de uma visão mais espiritual não pressupõe algo que deva ser desvendado, mas vivenciado, explorado, inspirado. Longe da perspectiva científica de superar a natureza, o mistério procura muito mais uma certa intimidade com o mundo. Lembro disso das rezas e dos ensinamentos que me criaram. Quase todos cristãos em sua postura, embora nem todos entrassem na igreja. A festa dos Karetas tem uma relação de sincretismo brincante. Ao redor do mundo é possível ver festas parecidas celebrando coisas parecidas em momentos diversos. No Ceará a festa marca uma celebração pela colheita, uma celebração da fartura.

Não deixo de ver a aproximação entre a transformação da semente em alimento que acontece na terra e a transformação da morte em vida proposta pela ressurreição de Jesus Cristo. Olhando assim, de uma certa forma, estamos todos celebrando a vida se renovando. Tendo sido eu criado a base de rezas, chás de ervas, infusões, promessas para santos, catequistas e milagres, vejo beleza em tudo. E vejo mistério.

Filmar uma celebração assim é de certa forma se envolver com esse mistério sem o desejo de solucioná-lo. Acredito que perspectiva científica (talvez fosse melhor dizer de uma perspectiva científica) de entender e superar a natureza embriague a maior parte da nossa percepção do mundo e isso tem nos desconectado da natureza. Talvez o filme tenha mais a dizer se, de alguma forma, continuar tão misterioso quanto o homem por debaixo da máscara de Kareta. Talvez seja por aí mesmo.